Filantropia feminista – uma genealogia do ativismo de mulheres
Mandala ilustrativa da Teoria da Mudança do ELAS+
por Amalia Fischer*
A multiplicidade de mulheres que existem no planeta tem sido parte central de diversos processos civilizatórios da humanidade. Em muitas culturas e sociedades, elas têm impulsionado e sustentado laços de coletividade e cooperação. No entanto, o primeiro conhecimento que temos sobre a origem do termo ‘filantropia’ é de uma palavra grega que significava “amor ao homem”. As mulheres não éramos nomeadas, não existíamos como seres dignas de amor. Somente depois de muitas críticas feministas a esse significado misógino, o conceito passou a ser entendido como “amor à humanidade”.
Na América Latina e parte do Caribe, a filantropia imposta pela colonização da península ibérica estava ligada à igreja católica que, nesse período histórico, tinha como ideologia política e religiosa a Inquisição. O conceito de ajuda e de amor ao próximo eram a piedade e a caridade, mas somente aos obedientes, que seguiam os preceitos dos homens brancos e da nobreza. Judeus, muçulmanos, negros, mulheres, pessoas LGBTQIAPNB+ e povos originários não eram reconhecidos como sujeitos de direitos e eram exterminados.
Nesta mentalidade colonialista e escravocrata era impossível o reconhecimento de outras formas de amor à humanidade, de filantropia, como o tequio¹ dos povos originários da Mesoamérica, o mutirão, as irmandades negras no Brasil e as diversas formas de apoio coletivo dos povos africanos. As mulheres sempre estiveram presentes e atuantes para liberar pessoas da escravidão, para ter leis de proteção de direitos básicos e mudança social, engajadas nas mais diversas formas de filantropia. Contudo, somente em raras exceções ocupavam cargos de liderança. São os homens brancos que, ainda hoje, ocupam os cargos mais altos dentro do ecossistema filantrópico, como Graciela Hosptein e Martina Davidson descrevem no artigo, publicado por GIFE (2019), “O trabalho das mulheres nas organizações sociais no Brasil: desigualdades e paradoxos”.
Entre os anos 1980 e 1990, foram criados centros feministas da sociedade civil, apoiados financeiramente pela cooperação internacional e fundações privadas, e dentro das universidades que inundaram a sociedade com pesquisas sobre a situação da inequidade e da opressão às mulheres. Promoveram encontros feministas para debater autocuidado, saúde das mulheres, relações horizontais, ética feminista, lutas antirracistas e direitos LBT. Uma parte fez uma crítica importante à autonomia dos movimentos feministas e outra se engajou na preparação da IV Conferência de Políticas para as Mulheres, em Beijing (1995).
Porém, depois de Beijing algumas fundações privadas optaram por priorizar outras causas. Com a saída desses financiadores, muitas organizações começaram a sofrer crise econômica, algumas fecharam e outras diminuíram atividades, afetando muitas mulheres.
As poucas fundações privadas que continuaram apoiando a causa decidiram privilegiar projetos em detrimento do fortalecimento institucional e da sustentabilidade das organizações. A partir de uma nova economia globalizada e neoliberal, os investidores introduziram ferramentas empresariais e modelos de eficiência corporativa, negligenciando as reais necessidades das mulheres e suas comunidades.
Enquanto isso, o Vaticano, o Opus Dei e milionários conservadores americanos e russos investiam no fortalecimento de organizações de cunho religioso que acabaram criando a narrativa da ideologia de gênero e os grupos contrários à justiça reprodutiva e à comunidade LGBTQIAPNB+. Pesquisa realizada pela Agência Pública, baseada em documentos vazados por WikiLeaks, aponta que, entre 2007 e 2018, 54 financiadores na Europa teriam gastado 706 milhões de dólares para financiar ações antigênero.
Diante dessa situação, aparecem novos players globais: os fundos de mulheres. Nesse contexto, também surge Prospera, uma rede internacional para conectar esses fundos. A ideia é influenciar o ecossistema filantrópico, trazer mais recursos flexíveis para as organizações de mulheres, mostrar que com grantmaking baseado na confiança e fortalecendo as instituições, a mudança social acontece de uma forma mais profunda. As organizações de mulheres conhecem as necessidades e as soluções nos diversos territórios, comunidades, e movimentos que participam. São elas que trabalham pela justiça socioambiental, equidade de gênero e racial, porque sem uma não existe a outra. Mas, são as que menos recebem recursos.
Pesquisas realizadas na década de 2010, por fundos e organizações de mulheres como Awid, demonstraram que menos de 1% do total do financiamento no mundo era direcionado para as organizações de mulheres, mesmo sendo elas um dos principais agentes de transformação social. A pandemia de coronavírus mostrou que as mulheres atuaram em diversas áreas, em papéis extremamente importantes no enfrentamento à situação de urgência sanitária e humana. Tudo o que os fundos de mulheres falavam durante as últimas décadas, sobre a importância de investir nelas, foi evidenciado.
Dados da ONU mostram que aproximadamente 70% do pessoal que atua na linha de frente da saúde e da assistência social eram mulheres. No Brasil, quase 85% dos auxiliares e técnicos de enfermagem são mulheres, segundo relatório do Conselho Federal de Enfermagem e da Fundação Oswaldo Cruz. Elas também suportam uma carga desproporcional de trabalho não remunerado, como cuidadoras, e são agentes essenciais no desenvolvimento sustentável de todos os países. A pandemia demonstrou a necessidade urgente de atuar pela equidade de gênero e de raça.
O levantamento “Ativismo e Pandemia no Brasil”, realizado pelo ELAS+ sobre as organizações de mulheres e LBTs na pandemia, revela que elas foram rápidas, criativas e resilientes. Com pouco ou nenhum recurso, promoveram impactos positivos em suas localidades. A análise, que apresenta um retrato de 953 organizações da sociedade civil, formais e informais, lideradas por mulheres cis, trans e outras transidentidades de todas as regiões do Brasil, mostrou que elas estão resistindo a todos os desafios e precisam de mais apoio.
A crise ambiental, econômica, guerras que vivemos e grupos antidireitos fortalecidos, pedem um projeto civilizatório drasticamente diferente, complexo, interseccional e multifacetado. Precisamos de uma filantropia não colonialista, participativa, baseada em colaboração e confiança, e de impacto social coletivo.
É hora da filantropia se concentrar principalmente em mulheres e meninas, população negra, povos originários, populações deslocadas, migrantes e comunidade LGBTQIAPNB+. Tanto nas áreas urbanas quanto nas rurais, elas são os principais agentes de transformação social. E é hora de dar passos sustentáveis e significativos para extinguir todas as formas de discriminação.
*Amalia Fischer idealizadora, cofundadora e Diretora-Geral do ELAS+ Doar para Transformar
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[1] tarefa ou o trabalho coletivo que cada pessoa deve à sua comunidade indígena.